Preservando o património da cortiça portuguesa

Posted on August, 15 2005

Este Verão, António Gonçalves Ferreira encontra-se a descortiçar os sobreiros dos seus avós sob o sol ibérico abrasador. Durante uma pausa do trabalho intenso de gerir a sua herdade, que está na mãos da sua família há cinco gerações, vem-lhe à memória o antigo ditado dos seus antepassados: “Eucaliptos são para nós, os pinheiros para os nossos filhos e os sobreiros para os nossos netos”.
 
Texto de Claire Doole
 
Este Verão, António Gonçalves Ferreira encontra-se a descortiçar os sobreiros dos seus avós sob o sol ibérico abrasador. Durante uma pausa do trabalho intenso de gerir a sua herdade, que está na mãos da sua família há cinco gerações, vem-lhe à memória o antigo ditado dos seus antepassados: “Eucaliptos são para nós, os pinheiros para os nossos filhos e os sobreiros para os nossos netos”. 
 
Os sobreiros podem viver até 500 anos. Embora o descortiçamento seja realizado de nove em nove anos, demora no mínimo 40 anos para que a casca do sobreiro se torne comercialmente viável. Esta é a razão pela qual a maioria das plantações de sobreiro passa de geração em geração, na esperança  de que os próximos venham, eventualmente, a beneficiar deste produto florestal único. 

A herdade de António em Coruche, fica a uma hora de caminho da capital, Lisboa, no sentido nordeste, e estende-se por mais de 3.000 hectares na região centro de Portugal em pleno coração dos montados de sobro, onde o gado pasta e as plantações de pinheiros e eucaliptos crescem juntamente com os sobreiros. Durante o verão, os montados ressoam ao som da casca dos sobreiros descortiçada pelos trabalhadores. As largas e compridas tiras são então empilhadas até fazerem uma ‘parede de cortiça’, antes de serem levadas para a fábrica onde serão transformadas em rolhas para garrafas de vinho e champanhe, materiais de isolamento ou solas de sapatos. 
 
As técnicas de exploração de cortiça não mudaram muito desde os tempos dos trisavós de António. Foi no século XVIII que as indústrias do vinho e do champanhe começaram a usar rolhas de cortiça,  actividade que representa hoje 70 por cento da produção total de cortiça em Portugal. Actualmente, Portugal é o maior produtor mundial de cortiça seguido da Espanha, Algéria, Marrocos, Itália, Tunísia e França. 
 
“O mercado tornou-se muito mais comercial e competitivo desde os tempos dos meus avós,” diz Ferreira. “Estamos a fazer o melhor que podemos para continuarmos e mantermos a tradição acesa.” 
 
Da floresta às cinzas  
Para António Ferreira e outros grandes produtores de cortiça na região de Coruche e na vizinha região do Alentejo, o futuro apresenta-se relativamente animador, especialmente porque as suas herdades são suficientemente grandes e diversas para serem economicamente sustentáveis. No entanto, no Algarve, a sul de Portugal, onde as plantações de sobreiro (Querus suber) são pequenas, os produtores têm que fazer um esforço cada vez maior para sobreviverem. 
 
Alguns proprietários calculam que para conseguirem um retorno médio anual de €20.000 era necessário que as suas propriedades tivessem pelo menos 400 hectares. Segundo Ferreira, um hectare de sobreiro rende cerca de €45 por ano, enquanto que um hectare de eucalipto, que pode ser utilizado para a produção de papel e pasta, após 12 anos, rende €150 por ano. 
 
Na Serra de Monchique, a sul de Portugal, um dos mais ricos habitats naturais de sobreiro do país, os produtores fizeram os cálculos e foram optando pelas espécies de crescimento rápido como os eucaliptos... mas não sem custos. As árvores de eucalipto ardem mais rapidamente do que os sobreiros, cuja casca dura actua como barreira protectora. Isto tornou-se mais evidente quando os produtores na Serra de Monchique perderam 70.000 hectares de floresta devido aos incêndios que devastaram o sul de Portugal em 2003.     
 
"Foi trágico," recorda Helder Águas, presidente da Cooperativa dos Produtores Florestais do Barlavento Algarvio. "Foi o pior dia da minha vida quando vi tudo transformar-se em cinzas." 
 
Águas, um dos maiores proprietários na zona, perdeu quase toda a propriedade de 320 hectares. Desmoralizados e atolados em burocracia governamental, poucos foram os membros da cooperativa que se deram ao trabalho de preencher os formulários de indemnizações necessários para começar de novo. Dois anos mais tarde, a Serra de Monchique permanece como testemunho da destruição. Árvores e arbustos secos encontram-se alinhados à beira da estrada, enquanto que os eucaliptos crescem rapidamente criando raízes nos vales.   
 
"Estas espécies ardem rapidamente e portanto se o fogo regressar novamente vai tudo pelos ares como um barril de pólvora," adverte Águas, acrescentando que isso será o fim da economia local que tanto dependente da floresta. 
 
Abandono dos Montados de Sobro
Como se não fosse suficiente, muitos proprietários têm vindo a abandonar as suas propriedades, em números recorde, alguns em direcção ao litoral. Os proprietários ausentes aumentam assim o risco de alastramento dos fogos. 
 
"Se os vizinhos não estiverem lá para remover o lixo, limpar as matas e criar protecções ao fogo, os fogos espalhar-se-ão mais facilmente," queixa-se António Sousa que tem vivido das suas poupanças desde que perdeu 55 dos 60 hectares da sua propriedade em 2003. 
 
Enquanto Portugal enfrenta a maior seca desde à décadas, a população torce para que não se repitam os acontecimentos dos fogos florestais de 2003 que destruíram 425.000 hectares pelo país inteiro – os piores incêndios nos últimos 20 anos. Segundo a Direcção Geral dos Recursos Florestais (DGRF), mais de 68.000 hectares de floresta foram destruídos desde o início de 2005, dos quais 52.000 hectares arderam só no mês de Julho. 
 
"Os fogos são os primeiros sinais de abandono," afirma Luís Silva do WWF. "Se não agirmos agora, assistiremos a um êxodo rural imparável que terá repercussões determinantes na economia."  
 
Mas, o êxodo rural já vai em fase avançada no Vale de Guadiana, perto da fronteira com Espanha. Nos anos 60 habitavam na região 25.000 pessoas. Hoje são 8.000. 
 
Sebastião da Luz, um trabalhador agrícola reformado, passou os seus 74 anos na Vila da Amendoeira da Serra. Tem visto a população diminuir de 300 para 60 habitantes e praticamente todos os jovens, incluindo a sua filha e filho, partiram em busca de empregos no litoral. 
 
"Quando eu era um jovem pastor, costumava chover muito e os campos eram verdes... terra fértil para a criação de gado e crescimento de colheitas aráveis, mas agora já não chove nem no Inverno e estamos todos preocupados." 
 
No Vale de Guadiana a maior parte dos filhos dos agricultores já partiram, enquanto que na Serra de Monchique nenhum dos proprietários rurais deseja que os seus filhos sigam as suas pegadas. 
 
"O meu filho é médico nos Estados Unidos da América e a minha filha está a estudar Sistemas de Informação," diz Helder Águas, Presidente da Cooperativa dos Produtores Florestais do Barlavento Algarvio. "Quando a propriedade se tornar demasiado para mim e para a minha esposa teremos que a vender." 
 
Segundo Jorge Revez, Presidente da Associação de Defesa do Património de Mértola (ADPM), a desertificação - causada pela produção agrícola intensiva e pelas mudanças climáticas – é um choque psicológico para a população, especialmente para os agricultores. 
 
"Os terrenos baldios desmotivam a população," acrescentou Jorge Revez. “Eles perdem a vontade de se tornarem parte integrante da comunidade e de contribuirem para a mudança." 
 
A ADPM está a trabalhar em parceria com a organização internacional WWF no sentido de incentivar os agricultores investirem no restauro e gestão sustentável das suas terras, através da plantação de sobreiros e outras árvores e espécies autóctones que respeitem o ecossistema florestal original da região. 
 
Salvar a Cortiça
Marta Cortegano, engenheira florestal, funcionária da ADPM, chama a atenção para as sementes de sobreiro que a organização plantou e para as árvores de sobreiro que restaura numa herdade de 200 hectares em Mértola – a herdade do Monte do Vento. Embora muitas das sementes não tenham sobrevivido à seca deste ano, Cortegano está confiante que o sobreiro pode desempenhar um papel preponderante na revitalização económica da região.  
 
"As florestas de sobreiro não têm apenas um valor económico mas também ambiental," afirma Marta. "Ajudam a conservar o solo, funcionam como amortecedores contra fogos florestais, e retêm água para controlar a absorção e a erosão, limitando assim o impacto da desertificação e das alterções climáticas." 
 
Em Junho de 2005 o WWF, Fundo Mundial para a Natureza, lançou um projecto na região sul do país, juntamente com a Comissão Regional de Reflorestação do Algarve e com proprietários algarvios, com o objectivo de prevenir, no futuro, os incêndios florestais em grande escala. Conhecido como Projecto Cansino,  o projecto consiste em restaurar as áreas ardidas, através da reorganização da paisagem florestal com o objectivo de a tornar mais resistente aos incêndios. Árvores de sobreiro serão plantadas ao lado de eucaliptos e medronheiros, funcionando como barreira contra o fogo. Espera-se que o projecto piloto de 4.000 hectares, a ser desenvolvido nos próximos três anos, possa ser usado como modelo para outras áreas devastadas em Portugal. 
 
"É vital que os proprietários das florestas e plantações, assim como as autoridades locais, participem neste projecto piloto,” afirma José Rosendo, presidente da Comissão Regional de Reflorestação do Algarve. "Só podemos combater a ameaça dos fogos florestais se trabalharmos juntos com o objectivo de melhorar a gestão das propriedades florestais." 

O WWF concentra, actualmente, esforços no sector da cortiça portuguesa – tanto ao nível dos proprietários das florestas e montados de sobreiro, como ao nível das indústrias transformadoras da cortiça – demonstrando boas práticas de gestão florestal apoiadas no sistema de certificação do Forest Stewardship Council (FSC). Em Portugal, 912 hectares de montado de sobro na região de Coruche estão agora certificados pelo FSC, uma nova oportunidade para as indústrias de cortiça fornecerem o mercado com os primeiros produtos certificados. 
 
"Este é um passo muito importante na conservação da biodiversidade e para o mercado da cortiça" afirmou Nora Berrahmouni, coordenadora do Programa Sobreiro do WWF. 
 
"As florestas de sobreiro estão classificadas como focos de biodiversidade do Mediterrâneo e da Europa. Ao mesmo tempo, representam o pilar de toda uma economia. A certificação FSC irá reforçar as características ambientais existentes na economia da cortiça, abrindo novas oportunidades no mercado da cortiça. " 
 
O maior transformador mundial de cortiça, o Grupo Amorim, fornecerá o mercado já no próximo Verão com produtos com o selo do FSC, produzidos em duas das suas fábricas em Portugal. 
 
"Estamos convencidos que existe um número crescente de pessoas que, ao abrir uma garrafa de champanhe, gosta de brindar a um estilo de vida que é tradicional, amigo do ambiente e economicamente viável," afirmou Alexandra Lauw, responsável da qualidade da fábrica de Coruche do Grupo Amorim. 
 
Os produtores de cortiça estão cada vez mais interessados na certificação FSC, beneficiando não só as árvores de sobreiro e a cortiça mas também contribuindo para a preservação de habitats para o lince Ibérico e a águia de Bonelli, espécies em vias de extinção. Os produtores partilham da forte convicção de que é preciso fazer mais para promover a história da ‘cortiça’ e o papel importante que esta representa na sociedade portuguesa. 
 
"A população tem vindo a colher cortiça há várias gerações," diz António Ferreira de Coruche. "Temos o dever moral de continuar esta tradição através dos nossos filhos e netos." 
 
* Claire Doole, responsável de imprensa do WWF internacional 
  
NOTAS FINAIS:

• São sete os grandes países mundiais produtores de cortiça: Portugal, Espanha, Argélia, Marrocos, Itália, Tunísia e França. 
 
• WWF lançou em Julho de 2004 o Programa Sobreiro, programa com a duração de 5 anos, que tem como objectivo contribuir para a protecção, restauro e gestão das florestas e montados de Sobreiro no Mediterrâneo, influenciando as políticas, as práticas e os mercados que os afectam. O Programa do WWF lança novos desafios ao promover mercados sutentáveis, influenciar as práticas, as políticas, construindo redes de parcerias locais, nacionais e internacionais e demonstrando soluções nos seus  projectos piloto no terreno. O Programa, numa primeira fase, focar-se-á em Portugal, Espanha, Marrocos e Tunisia e baseia-se em  4 pilares – capacidade de empreendimento, estabelecimento de boas práticas, apoio ao consumo responsável e relações públicas / influência nas decisões políticas. 
 
• Forest Stewardship Council (FSC) é uma organização independente, não lucrativa e não governamental com sede em Bonn, Alemanha. O sistema de certificação FSC oferece um selo internacionalmente reconhecido que premeia as práticas de gestão florestal responsáveis. Cada vez mais, grandes revendedores e consumidores exigem a garantia de que os produtos que fornecem ou compram resultam de práticas responsáveis de gestão. O Forest Stewardship Council (FSC) é constituída por três câmaras – económica, ambiental e social - que define os princípios e critérios do FSC. É uma entidade creditadora que fornece o selo do FSC, creditando determinadas empresas certificadoras que se tornam responsáveis pelos processos de certificação FSC. Estes processos são submetidos ao Conselho para atribuição do selo FSC. O FSC intervém em mais de 65 países em todo o mundo. Mais de 53 milhões de hectares de floresta já foram certificados de acordo com os critérios do FSC, tendo sido emitidos até à data 694 certificados de gestão florestal e 3785 certificados de Cadeia de Custódia. Esta organização foi fundada em 1994 por organizações ambientais como o WWF, Friends of the Earth e Greenpeace; profissionais ligados à floresta; grandes revendedores como a cadeia Sueca IKEA e a cadeia Inglesa B&Q; e grandes e pequenas empresas florestais.

• A organização WWF considera que o sistema de certificação Forest Stewardship Council (FSC) é o único sistema credível para assegurar a gestão sustentável de uma floresta, ou seja, uma gestão realizada de forma responsável ao nível económico, ambiental e social. O WWF recomenda o sistema FSC a consumidores, proprietários e gestores florestais, decisores políticos, empresários e ao público, em geral. 
Os sobreiros, que podem viver até 200 anos, estendem-se por cerca de 2.7
milhões de hectares em Portugal, Espanha, Argélia, Marrocos, Tunisia e
França.
Os sobreiros, que podem viver até 200 anos, estendem-se por cerca de 2.7 milhões de hectares em Portugal, Espanha, Argélia, Marrocos, Tunisia e França.
© WWF / Michel Gunther
Descortiçamento – Coruche, Portugal
© WWF / Sebastian Rich
 Apesar da cortiça poder ser retirada da árvore de nove em nove anos, são necessários pelo menos 40 anos para um sobreiro se tornar economicamente produtivo.
Apesar da cortiça poder ser retirada da árvore de nove em nove anos, são necessários pelo menos 40 anos para um sobreiro se tornar economicamente produtivo.
© WWF / Claire Doole
Helder Águas, Presidente da Cooperativa de Produtores Florestais do Barlavento Algarvio, verifica no terreno o que restou da sua propriedade, depois dos incêndios devastadores de 2003. Monchique, Algarve, Portugal.
© WWF / Claire Doole
Pequenas sementes de árvores de sobreiro numa estufa local.
© WWF / Claire Doole
Terrenos afectados pela desertificação. Mértola, Alentejo, Portugal.
Terrenos afectados pela desertificação. Mértola, Alentejo, Portugal.
© WWF / Sebastian Rich